sexta-feira, 26 de junho de 2020

Sobre o livro «A Educação dos Gafanhotos» de David Machado. Dom Quixote, 2020










Este é um livro que é publicado na altura errada.

Marco e David são amigos inseparáveis desde que se encontraram, em Génova, numa estadia académica sobre literatura comparada. Resolvem fazer uma pausa e percorrer os Estados Unidos de mochilas às costas e literatura no bolso. A vida e a ficção, para eles, dividem-se em dois hemisférios: o mundo olhado do lado psicológico, interior, onde o leitor é convocado a refazer o espaço através das indefinidas premissas delineadas por William Faulkner; ou, então, visto pelo lado viril e circunstancial, directo, centrado na paixão pelo acto de viver, ao mesmo tempo expansivo mas egocêntrico, de Ernest Hemingway.

Discutem muito enquanto avançam, estado após estado, cerveja após cerveja, vendo de modo mais ou menos superior e arrogante, entre as gentes estranhas de um enorme país estranho. David critica Marco por ter deixado uma namorada em Londres. Aquela viagem devia ser tão liberta de laços afectivos como de preconceitos turísticos ou princípios sociais. Tinham de avançar livres como, afinal, não o terá feito John Steinbeck em «Viagens com o Charley».

Contudo, visitam o Disney World e as Cataratas do Niagara.

Até que desaguam na Bourbon Street do French Quarter. Nova Orleães está festiva após o Mardi Gras e engole-os no encanto do movimento, obrigando-os a voltarem lá, mais tarde. Aí bebem ainda mais e confundem-se no clima tropical da cidade, desorientando-os dessa arrogância que assumem perante os estereótipos tão diversos que a grande nação apresenta. Miami, Palm Beach aproxima-se. Ligam o radio e a notícia fatal leva-os ao rápido desejo de regresso, segurando-os ao desprezado termo da saudade.

Na linguagem narrativa ágil, sempre em corrida “estrada fora”, (aqui até um pouco apressada demais), de David Machado, os dois amigos precipitam-se numa série de peripécias desequilibradas e gagues grotescos, tendo como pano de fundo a sistemática presunção superior perante a cultura e o povo americanos.

Numa altura que estamos a ver crescer no mundo a onda hedionda do racismo e da intolerância. Quando vemos o país de Hemingway, Faulkner e Steinbeck (também de Saroyan ou Bradbury) ser destroçado por um mitómano mentiroso mentecapto Donald Trump. Eu preferia não ter lido este livro agora.


jef, junho 2020


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