quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Sobre o disco «Recanto» de Gal Costa, Universal, 2011















Existe uma preciosidade específica no disco que toca fundo e ao mesmo tempo nos transcende. Toca-nos porque nos complementa ou completa. «Recanto» é um acto de amor físico, afectuoso, moral e político, tropicalista, entregue a Gal Costa por Caetano Veloso (que escreve e compõe todas as canções). Também de Moreno Veloso, seu afilhado, que produz o álbum. Também do músico Kassin que electriza, electronicamente e electricamente, quase todas as 11 faixas.

Nos complementa ou completa porque é um disco centrado na palavra dita, mesmo que cantada, como fazem os grandes poemas que trazem a própria música dentro e nos fazem crer que somos também parte deles.

Transcendem-nos porque o que não entendemos é o que mais gostamos. A grande música brasileira tem sempre qualquer coisa que se auto-transgride.

Uma libertação dos cânones e, ao mesmo tempo, um amor profundo pelo que os cânones ajudam a manter vivo, na memória e na usurpação desta.

O limite poético entre a palavra vocalizada e a palavra recitada pela palavra, entre a bossa-nova e o baião, a canção de embalar, a electrónica, a guitarra eléctrica, o hip-hop e o sample arranhando o vinil.

Não esperem samba! Não esperem alegria louca! Aguardem a consciência simples que se inicia:

«Eu venho de um recanto escuro
O sol, luz perpendicular
Do outro lado azul do muro
Não vou saltar»

E temina:

«Esse é a última cerveja
Bendigo quem vai à igreja
Quem não vai, louvado seja
Segunda é dia de branco.»

jef, fevereiro 2019

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