Existe uma preciosidade específica no disco que toca
fundo e ao mesmo tempo nos transcende. Toca-nos porque nos complementa ou
completa. «Recanto» é um acto de amor físico, afectuoso, moral e político, tropicalista,
entregue a Gal Costa por Caetano Veloso (que escreve e compõe todas as canções). Também de Moreno Veloso, seu afilhado, que produz o álbum. Também do
músico Kassin que electriza, electronicamente e electricamente, quase todas as
11 faixas.
Nos complementa ou completa porque é um disco centrado na
palavra dita, mesmo que cantada, como fazem os grandes poemas que trazem a
própria música dentro e nos fazem crer que somos também parte deles.
Transcendem-nos porque o que não entendemos é o que mais
gostamos. A grande música brasileira tem sempre qualquer coisa que se
auto-transgride.
Uma libertação dos cânones e, ao mesmo tempo, um amor profundo
pelo que os cânones ajudam a manter vivo, na memória e na usurpação desta.
O limite poético entre a palavra vocalizada e a palavra
recitada pela palavra, entre a bossa-nova e o baião, a canção de embalar, a
electrónica, a guitarra eléctrica, o hip-hop e o sample arranhando o vinil.
Não esperem samba! Não esperem alegria louca! Aguardem a
consciência simples que se inicia:
«Eu venho de um recanto
escuro
O sol, luz perpendicular
Do outro lado azul do muro
Não vou saltar»
E temina:
«Esse é a última cerveja
Bendigo quem vai à igreja
Quem não vai, louvado seja
Segunda é dia de branco.»
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