«Encontrava-me ali contrafeito.»
Começa o romance de João Reis.
Um homem conta a um amigo as suas lentas peripécias num campo
alemão para soldados aliados durante a guerra das trincheiras. Ele é graduado
mas os papéis desapareceram. Tivesse ele a documentação e estaria
noutro local, acomodado como oficial. Ali, tem de suportar a fome, sempre a
fome, a imensa fome e a comichão…
… mas ao amigo (com dois bilhetes de comboio, porque um
talvez seja pouco) não lhe interessa o dia-a-dia na caserna. Apenas lhe interessa
um assunto muito particular que será narrado no final. Aguarda-o e
escuta com mais ou menos bules de chá na sua frente.
Quem conheça as anteriores ficções de João Reis sabe que ele
é um escritor que não se acomoda na facilidade, muito menos na moda. Não esperemos narrativas previsíveis. Contudo, a sua escrita está enraizada
nesse existencialismo pós-romântico tão ao jeito do centro e do norte da Europa.
Para nós, sempre a Leste. A angústia paciente de Kafka, a desorientação controlada
de Knut Hamsun, a raiva estratégica de Dostoievksy. A narrativa truncada pelas
reviravoltas da vida, sem incipit expectável ou final onírico.
Também o nosso personagem percorre a fome, a devastação do
silêncio, a incompreensão do lugar e a disfuncionalidade da instituição. E
sobrevive ao modo e ao seu tempo. Tal como os personagens de «A Liberdade de
Pátio» de Mário de Carvalho (2013) ou «O Deserto dos Tártaros» de Dino Buzzati
(1940).
p.s. E é um livro ilustrado pelos desenhos de Lord Mantraste. Capa dura e em papel coral de 80g. Uma maravilha.
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