quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Sobre o filme «Viver» de Akira Kurosawa, 1952.






























A vida é breve, a burocracia imensa, mas o chapéu é novo.

Se existe um filme, profundamente terno, sobre a ideia de vida (e a de morte), uma espécie de lição sobre a consciência e o propósito de andarmos por aqui alguns minutos, ele é «Viver – Ikiru». Contado de modo inusitado para que o espectador não perca, em vão, nem um dos 143 minutos da sua duração.

Tudo gira em torno do olhar do actor Takashi Shimura que nos observa, olhos nos olhos, quase nos inquirindo sobre a solução do seu problema. Ele encarna o louvado funcionário público no activo há 30 anos, Kanji Watanabe.

Numa espécie de prolepse-flashfoward, uma voz-off vagamente irónica informa-nos através de radiografia que o estômago do personagem aloja um cancro que não lhe dará muito tempo de vida. Mas ele ainda não sabe. A busca premente de um sentido para tudo ocupa a primeira parte do filme.

Quase sem aviso, a ironia da mesma voz anuncia que iremos ao seu velório. Em analepse-flashback, todos os familiares, colegas e superiores vão-se embebedando de saké enquanto comem e divagam sobre a vida do cumpridor funcionário Watanabe. A fotografia fúnebre continua a olhar-nos enquanto vamos revendo os diversos episódios reconstrutivos da memória de cada dos convivas mais ou menos enlutados. Todos acabam a chorar jurando honrar tamanha dedicação. Mas estão deveras alcoolizados.

Este filme enciclopédico deve ser visto por todos os que têm dúvidas sobre o sentido da vida, a profundidade final da alma, a burocracia nos serviços públicos, o direito à diversão, o peso da família, mas também sobre como filmar em multidão e em solidão, como colocar a câmara no ponto preciso de fuga que une o olhar e a emoção, situando ao mesmo nível actores e espectadores, também como gerir a melhor banda sonora, como definir uma nova e estranha estratégia narrativa.

Um filme que termina com uma das mais belas e comoventes cenas alguma vez filmada. (A mais bela das canções!) Só comparável à da maçã a ser descascada pelo velho pai Suchiki Somiya em «Primavera Tardia» (Yasugiro Ozu, 1949), ou a da neve envidraçada que tomba da mão em «O Mundo a seus Pés» (Orson Welles, 1941).

Um filme que jamais se esquecerá.

 

jef, outubro 2020

«Viver» (Ikiru) de Akira Kurosawa. Com Takashi Shimura, Nobuo Kaneko, Kioko Seki, Makoto Kobori, Kumeko Urabe, Yoshie Minami, Miki Odagiri, Kamatara Fujiwara, Minosuke Yamada, Haruo Tanaka, Bokuzen Hidari, Minoru Chiaki, Shinichi Himori, Nobuo Nakamura, Masao Shimizu, Yonosuke Ito, Yatsuko Tanami, Seiji Miyaguchi, Ichiro Chiba. Argumento: Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni e Akira Kurosawa. Fotografia (35mm, 1,33): Asakazu Makai

Direcção Artística: So Matsuyama. Música: Fumio Hayasaka. Montagem: Akira Kurosawa. Som: Fumio Yanoguchi. Produção: Toho (Tóquio). Japão, 1952, P/B, 143 min.

Sem comentários:

Enviar um comentário