A vida é breve, a burocracia imensa, mas o chapéu é novo.
Se existe um filme, profundamente terno, sobre a ideia de
vida (e a de morte), uma espécie de lição sobre a consciência e o propósito de
andarmos por aqui alguns minutos, ele é «Viver – Ikiru». Contado de modo
inusitado para que o espectador não perca, em vão, nem um dos 143 minutos da sua duração.
Tudo gira em torno do olhar do actor Takashi Shimura que nos
observa, olhos nos olhos, quase nos inquirindo sobre a solução do seu problema.
Ele encarna o louvado funcionário público no activo há 30 anos, Kanji Watanabe.
Numa espécie de prolepse-flashfoward,
uma voz-off vagamente irónica informa-nos através de radiografia que o estômago
do personagem aloja um cancro que não lhe dará muito tempo de vida. Mas ele
ainda não sabe. A busca premente de um sentido para tudo ocupa a primeira parte
do filme.
Quase sem aviso, a ironia da mesma voz anuncia que iremos ao
seu velório. Em analepse-flashback,
todos os familiares, colegas e superiores vão-se embebedando de saké enquanto
comem e divagam sobre a vida do cumpridor funcionário Watanabe. A fotografia
fúnebre continua a olhar-nos enquanto vamos revendo os diversos episódios
reconstrutivos da memória de cada dos convivas mais ou menos enlutados. Todos acabam
a chorar jurando honrar tamanha dedicação. Mas estão deveras alcoolizados.
Este filme enciclopédico deve ser visto por todos os que têm
dúvidas sobre o sentido da vida, a profundidade final da alma, a burocracia nos
serviços públicos, o direito à diversão, o peso da família, mas também sobre
como filmar em multidão e em solidão, como colocar a câmara no ponto preciso de
fuga que une o olhar e a emoção, situando ao mesmo nível actores e
espectadores, também como gerir a melhor banda sonora, como definir uma nova e
estranha estratégia narrativa.
Um filme que termina com uma das mais belas e comoventes cenas
alguma vez filmada. (A mais bela das canções!) Só comparável à da maçã a ser
descascada pelo velho pai Suchiki Somiya em «Primavera Tardia» (Yasugiro Ozu,
1949), ou a da neve envidraçada que tomba da mão em «O Mundo a seus Pés» (Orson
Welles, 1941).
Um filme que jamais se esquecerá.
jef, outubro 2020
«Viver» (Ikiru) de Akira Kurosawa. Com Takashi Shimura, Nobuo
Kaneko, Kioko Seki, Makoto Kobori, Kumeko Urabe, Yoshie Minami, Miki Odagiri,
Kamatara Fujiwara, Minosuke Yamada, Haruo Tanaka, Bokuzen Hidari, Minoru
Chiaki, Shinichi Himori, Nobuo Nakamura, Masao Shimizu, Yonosuke Ito, Yatsuko
Tanami, Seiji Miyaguchi, Ichiro Chiba. Argumento: Shinobu Hashimoto, Hideo
Oguni e Akira Kurosawa. Fotografia (35mm, 1,33): Asakazu Makai
Direcção Artística: So Matsuyama. Música: Fumio Hayasaka.
Montagem: Akira Kurosawa. Som: Fumio Yanoguchi. Produção: Toho (Tóquio). Japão,
1952, P/B, 143 min.
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