quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Sobre o livro «As Trevas e Outros Contos» de Leonid Andréev. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Antígona, 2018.











Leonid Andréev não viveu muito (1871-1919) mas não parou de escrever, de inconformar, de debater, contestar, intuir. Estes cinco contos-novelas são exemplo dessa errância pelos temas mais profundos, pelos lemas mais íntimos da humanidade. A revolta política, a luta armada e a revolução, o desajuste social e urbano, a deriva psicológica e religiosa, a imaturidade e a procura sexuais. Tudo está aqui. Cinco textos que parecem muito simples na sua irónica asserção e franco desenvolvimento mas que logo derivam para uma inconclusão, invariavelmente trágica. Uma escrita perfeita para confirmar a dúvida eterna.

Assim também foi a vida de ‘Bartleby’ de Melville, o quarto de ‘Gregor Samsa’ de Kafka, a morte de ‘Ivan Iliitch’ de Tolstói, a ‘avenida Névski’ de Gógol, a ‘velha’ de Daniil Harms…

Em Leonid Andréev não há mesmo possibilidade de fuga. Antes se apresenta como uma revelação, ou até consumação através da arma e da bala, através da morte e do acto sexual, através da remissão e entrega ao mundo paralelo da demência. Toda a sociedade parece ironizar quando se aproxima dos protagonistas, como se quisesse ver-se livres deles.

Aleksei, revolucionário anarquista, armado e perseguido, mas virgem, esconde-se no quarto de Liuba, dócil prostituta, mas delactora, a quem ele reafirma: “Não quero ser bom.”

Ou Judas de Queriote, ruivo e medonho, ser de duas caras, que se imiscui entre os apóstolos, insinuando-se perante o insinuável e omnisciente filho de Deus, vendendo Cristo a Anás por trinta dinheiros e dando-lhe o beijo da guerra. Afinal, enforca-se pois, traidor traído, era de Judas Iscariotes que o Nazareno necessitava para concluir com êxito a sua missão terrena.

Ou esse conto espantoso, em que o Governador luta contra a inflamada memória de um lenço branco, por si agitado no ar, que fez os soldados dispararem sobre a manifestação pacífica de famílias de operários famintos, matando perto de cinquenta inocentes.

Ou na personificação do tédio absoluto que deixa Pável paralisado no interior do seu quarto e este dentro de um universal Nevoeiro, amarelo e urbano. Ou na assunção de que os Fantasmas que se movem em torno de Egor Pomerântsev naquele hospício psiquiátrico são mesmo as sombras reais de um mundo real.

Aguardemos com ansiedade novas traduções e mais edições dos contos maravilhosos de Leonid Andréev.


jef, outubro 2020


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