Não existe comédia mais extravagante e com um maior número de
subterfúgios e subentendidos na história do cinema. Digo, subentendidos não mal-entendidos,
pois aqui, ao fim de 80 anos, tudo é mais do que implícito. É tudo declarado.
Por que será que Susan Vence (Katharine Hepburn) se veste finalmente
de negro e com véu (tal como a putativa noiva Alice Swallow), subindo até ao dorso
esquelético do dinossauro para o destruir e conquistar em definitivo o amor do Professor
Davis Huxley (Cary Grant)?
Por que será que o Professor não larga o osso, a tal
clavícula intercostal em falta, e Susan não larga o agitado leopardo «Baby»? Por
que têm ambos de cantar desenfreadamente «I Can’t Give You Anything but Love,
Baby»?
Por que é que o psicanalista de circunstância papagueia a
Susan: «Frequentemente, o impulso do amor no homem expressa-se de modo
conflituoso.», enquanto tudo se desmorona à volta dos personagens, as peripécias
sucedem-se, as quedas esmagam chapéus altos, os fatos rasgam-se e Susan e David
têm de caminhar encostados e abraçados?
Por que afirmará o Professor Davis Huxey, travestido com um
sumptuoso roupão emplumado de senhora, «Tornei-me gay de repente!»? (O que
significaria esta frase há oitenta anos?)
Por que existem dois leopardos à solta, um bom e um mau, que
devem ser capturados numa extraordinária caçada nocturna liderada pelos
magníficos Charles Ruggles (Major Applegate) e May Robson (Tia Elisabeth)
coadjuvados pelo jardineiro Gogarty (Barry
Fitzgerald)? Entretanto, Susan e Davis, vão-se caçando um ao outro?
Por que acabarão todos enfiados em jaulas na cadeia e os animais a passear cá fora?
Não há filme mais cómico e mais inteligente sobre o amor e a
sedução que «As Duas Feras». Não há filme onde o riso e o guarda-roupa de
Katharine Hepburn mais seduzam.
Não há texto mais rápido e divertido nem
sucessão mais delirante de cenas caricatas.
A rever sempre que o tempo não anda de feição ou o espírito
se perde em realidades absurdas.
jef, abril 2018
«As Duas Feras» (Bringing Up
Baby) de Howard Hawks. Com Cary Grant
(Prof. Davis Huxley), Katharine Hepburn (Susan Vence), Charles Ruggles (Major
Applegate), May Robson (Tia Elisabeth), Barry Fitzgerald (Gogarty), Walter
Catlett (Slocum), Fritz Feld (Dr.
Lehmann, o psicanalista), George Irving (Peabody), Leona Roberts (a
criada, mulher do jardineiro), Tala Birrell (Mrs. Lehmann), Virginia Walker
(Alice Swallow, a noiva e secretária). Argumento: Dudley Nichols e Hagar Wilde.
Produção RKO Radio Pictures. EUA, 1938, P/B, 101 min.
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