quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Luchino Visconti. Realismo, a verdade dramática












Realismo, a verdade dramática

O que se torna evidente quando nos é dado observar, de uma vez, seis longas-metragens retiradas da não muito extensa obra cinematográfica de Luchino Visconti (1906-1976), é o facto indiscutível de que sobre elas pouco há a dizer. Cada filme, à sua maneira, indica ao espectador que está perante uma obra fechada sobre o próprio processo artístico, definitivamente concluída na sua perfeição narrativa e estética, legando a dúvida a quem assiste apenas como método pessoal introspectivo e nunca como expressa rebeldia artística. Ou seja, tal como sucede no teatro grego da antiguidade ou na ópera romântica, a arte submete-se ao seu desígnio doutrinário: o de fazer mover o interior das consciências através da ideia e da beleza.

Mas se a retórica assume aqui um papel bastante inoportuno, o discurso argumentativo desvenda também a sua faceta dialéctica, pois tudo quanto se disser sobre Visconti poderá ser negado, já que os seus filmes afirmarão, de seguida, o seu oposto. Isto acontece porque este cinema é puro, acima de tudo, literário, recebendo da palavra o princípio de coesão e, ao mesmo tempo, o fundamento do contraditório. Em «A Terra Treme» (1948) são, tacitamente, os auspícios de um “neo-realismo documentarista” que sustentam os cenários da aldeia de Aci Trezza e inspiram os movimentos dos não-actores, os pescadores que lá habitam. No entanto, tudo é rigorosamente premeditado e regido pelo pulso férreo do drama, desde a apresentação da família Valastro, no círculo quotidiano das mulheres através da sala, até ao percurso do mais jovem pescador guiando a algazarra comercial na lota dos polvos. Após a faina, o impetuoso Antonio recita: “os peixes do mar foram feitos para cair nas redes”, sugerindo a acção trágica que se abate sobre o pescador explorado. Todavia, Visconti, ele próprio narrador, logo a seguir repete a frase num contexto totalmente diferente, reformulando a leitura dogmática do destino a que a sociedade opressora obriga. Afinal, a frase, proferida enquanto Antonio vai ao encontro da namorada, pode ser interpretada de forma muito mais luminosa, como evocação de que pescar para os pescadores é uma acção tão bela e natural quanto o é a encenação de um filme para o seu realizador. Assim, a parábola de pescadores e realizador viverem dentro da obra de arte como peixes na água faz a tragédia respirar de alívio, embora apenas por um breve instante.

Também em «Obsessão» (1943) o vislumbre de um cinema carimbado com a falsa etiqueta da neo-realidade reflecte-se sobre o espectador como o método mais eficaz para, através da ilusão, chegar à crueza do seu princípio cinematográfico. De facto, Visconti usa-o como acelerador das partículas oriundas do espectáculo operático e do expressionismo do cinema mudo. A chegada de Gino é a visão emblemática do herói grego que chega do nada para despoletar a acção, até ali estagnada, e expor a incapacidade de Giovanna de lutar contra os demónios que lhe corroeram em definitivo a alma e a vontade. A sociedade, também ela vinda do nada, situada a meio caminho entre a poeira rural e os ecos da cidade, mostra-se altiva como o coro de um brilhante palco “verdiano” quando o corpo do marido de Giovanna é içado perante o povo enquanto a guarda policial escolta a descida do herói pela encosta. No entanto, o futuro do casal já estava traçado desde a enigmática frase de Gino: “Há coisas que eu guardo só para mim”. Contudo, e se olhado uma outra vez, «Obsessão» poderá parecer uma comédia. Uma ópera-bufa à italiana, profundamente dilacerada, marcada pela guerra que mantinha Itália dividida e frágil. Afinal, a tragédia vive à custa de um mundo burlesco e de sátira social retirada de um outro cinema: a começar pela gorda figura do marido, pelo padre de cartucheira à cinta ou pelos cantores de ópera populares. Mais tarde, um funesto dragão cobrirá de sombras a comédia que havia encarnado em cisne. E ambos vendem gelados. Contudo, mais melodramática é a comédia popular «Belíssima» (1951), onde Anna Magnanni é derrotada pelo sistema triturador da Cinecittà e, num final negro e subterrâneo, se vê obrigada a negar todos os sonhos dourados por que lutou para reconquistar a triste felicidade de outrora. Cinecittà é o símbolo da cidade exploradora, a criança o da própria ingenuidade materna, e Anna Magnanni a presença inesquecível das divas de um cinema muito antigo. Onde há riso antecipe-se o choro, onde está a desilusão veja-se o recomeço. Nada disto é neo-realista, antes assenta na mais clássica e universal matriz cultural.

Na verdade, era o próprio realizador que recusava o desconforto do epíteto “neo-realista”, aliás como outros realizadores italianos. Antes preferia a palavra mais simples “realista”, desviando o epicentro da cega máquina social para o percurso, íntimo e minucioso, realizado por cada personagem frente à realidade pública. E para o conseguir Visconti nunca excluiu qualquer utensílio artístico, buscando no cinema a visão mais aproximada da intimidade que o teatro e a ópera não lhe podiam fornecer. «Rocco e seus irmãos» (1960) é um caso paradigmático. O drama em cinco actos familiares inicia-se num contexto explicitamente político com o confronto entre a origem do mundo rural do Sul que chega de comboio à cidade do Norte, resplandecente em bulício e progresso. No entanto, o que está em causa é, acima de tudo, a inocente candura de todos os que se vêem a braços com um novo mundo cujas regras são agrestes e indecifráveis. “Hoje em dia, não há nada que não seja proibido”, desabafa a fogosa e urbana Nadia face ao ingénuo e campesino Rocco, pelo meio de uma cidade codificada. Ela devolve a jóia roubada como um fruto proibido que transporta a desgraça no seu interior. Nadia é o símbolo máximo da inocência e do sacrifício em torno do qual a intriga se desenrola. Por fim, ela entrega-se à morte de braços abertos. Não existe cena mais bela e simbólica.

No entanto, este epílogo quase evangélico é sublinhado por uma cidade em pleno desenvolvimento industrial que já se vai esquecendo de uma guerra “neo-realista”. Milão torna-se impessoal e transmissível através do movimento, da turbulência, da diversão, do nervosismo e agressividade das cenas, da multiplicação de personagens e cenários, onde o pugilismo adquire um papel emblemático. Uma contradição exemplar que não pode deixar de fazer lembrar os alicerces realistas da “nouvelle vague”, em que a presença de Annie Girardot e Alain Delon se torna irrecusável.

Deste modo, Visconti usa os diversos estratagemas dramáticos para melhor questionar não somente a evolução política da sociedade mas, sobretudo, o indivíduo face às inconsequências da própria evolução, num caminho inexorável feito de amargura e solidão. Para tal, o realizador atribuía o maior relevo aos papéis com os quais os protagonistas contracenavam e aos cenários que os envolviam. Só desta forma a essência do protagonista se desvendaria dramaticamente perante o público. Assim era na Grécia Antiga. Também assim acontece nesse nocturno renascentista que é «Luís da Baviera» (1972), onde a sociedade em entrevista encarcera o homem no fausto do seu íntimo mausoléu, abandonando-o a um cenário onde a luz, ou a ausência dela, acaba por se transformar em sudário. O mesmo já havia sucedido em «O Leopardo» (1963), mas de sinal contrário, quando D. Fabrizio, Príncipe de Salina, aceita participar na transformação de uma sociedade que ajudara a fundar para, mais tarde, ver-se por ela rejeitado. Na realidade, é o tempo que o expulsa e ele, finalmente, num acto sublime de romantismo, deixa-se beijar pela mais esplendorosa e fiel aliada: a morte. A ecoar fica a frase repetida: “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.

De maneira irrefutável, Luchino Visconti deitava definitivamente por terra as teorias do “neo-realismo” ou do necrófilo “decadentismo” com que o haviam associado. A decrepitude só se revelaria caso a velhice não soubesse aceitar a beleza da juventude que a vem substituir. Com a frontalidade exposta em toda a sua obra, teimosamente tão clássica quanto romântica, o realizador veio questionar o papel da juventude como princípio da renovação e, assim, perseguir a verdade que está contida na sociedade, no tempo e na beleza. Nisso, Visconti foi realista.

jef, março 2007

notas. 1. Embora as diversas fontes não sejam unânimes nas datas oficiais de algumas destas obras, optou-se por atribuir aquelas firmadas nas recentes edições da Costa do Castelo. 2. Infelizmente, as cópias de «A terra treme» e «Obsessão» não são versões restauradas. 3. Em «O Leopardo» e «A terra treme» surge um documentário sobre o realizador. 4. «O Leopardo» e «Luís da Baviera» são apresentados nas suas originais versões alongadas.


«Obsessão» (Ossesione, 1943). Com Clara Calamai, Massimo Girotti, Juan de Landa, Dhia Cristiani, Elio Marcuzzo. 134 min.

«A Terra Treme» (La terra trema: episodio del mare, 1948). Com António Arcidiacono, Giuseppe Arcidiacono, Nicola Castorino, Rosa Catalano. 153 min.

«Belíssima» (Bellissima, 1951). Com Anna Magnani, Walter Chiari, Tina Apicella, Gastone Renzelli, Tecla Scarano. 110 min.

«Rocco e seus Irmãos» (Rocco e i suoi fratelli, 1960). Com Alain Delon, Renato Salvatori, Annie Girardot, Katina Paxinou, Alessandra Panaro, Spiros Focas. 171 min.

«O Leopardo» (Il gattopardo, 1963). Com Alain Delon, Cláudia Cardinale, Burt Lencaster, Paolo Stoppa, Serge Reggianni, Rina Morelli, Romolo Valli. 178 min.

«Luís da Baviera» (Ludwig, 1972). Com Helmut Berger, Trevor Howard. 228 min.



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