Os deuses não escolhem
Ao fundo da cena, por entre o pano da invisibilidade, o
pianista torna-se o observador atento da tragédia que se desenrola ali perto, no
palco, iluminado a branco. Empédocles, perante o terrível dilema, é arrastado
até à escolha impossível. Amado pelo povo como deus, é, simultaneamente, odiado
pelos doutores como usurpador da fé e da devoção divina. Depois, repudiado como
traidor por quem o amou, também é invejado pela ignomínia de chefes e
sacerdotes que lhe cobiçam o alto critério do seu pensamento. Agora, amparado
na inquebrantável lealdade do seu seguidor, Pausânias, e na paixão pura e
devota da jovem Pânthea, vê-se obrigado a fugir da cidade e do jardim onde o
escutaram e veneraram. Mas é na montanha que ele encontra o refúgio necessário
e pode, finalmente, saciar a sede na fonte da sabedoria. Apenas a natureza lhe
devolve a tranquilidade e nela reencontra o significado para a sua liberdade.
Mais tarde, imploram que regresse mas ele recusa. É tarde demais, já nada o
fará voltar atrás. O tormentoso caminho para a sua última decisão está agora
serenamente traçado! No eco da clara planície povoada de pequenos seixos,
transformada na densa montanha redentora, ressoa ainda a voz firme de
Empédocles que, virado para o seu fiel amigo, declarara para que todos o oiçam:
«Pausânias! Não te esqueças disto: Aos mortais nada é dado de
graça.»
A
música adquire a força de um pungente recitativo que reforça os laços entre
cada emoção e o carácter de cada personagem. Como se as palavras fossem demasiado
verdadeiras para serem escutadas, são as sábias notas musicais das derradeiras
sonatas de Schubert que permitem abrir as portas que levarão o pensador até à
sua livre escolha. A sombra do herói desaparece, o cenário suspende-se na
crueza das cores saturadas. O piano silencia-se. O público compreende.
É, precisamente, através no silêncio de uma partitura ausente
que se progride durante os minutos finais sobre a tela negra, livre de imagens,
legendas e genéricos, que o realizador Pedro Costa sugere a reentrada para a
outra realidade. No fundo, o espectador tem ali a chave que o fará regressar da
longa apneia em que mergulhou. O tempo e o espaço são-lhe devolvidos mas ele
fica retido pelo preciso, mas enigmático, objecto da obra. O silêncio da música
talvez seja o único epílogo possível para o filme que acabou de ser exibido.
Sem margens nem conceitos. É ali que o espectador se confronta, em definitivo,
com o labirinto de imagens e soluções de vida que lhe foi proposto. Será que
aquela realidade lhe concedeu os autênticos parâmetros capazes de interpretar a
falsa serenidade em que vive? Ou a falsa realidade do écrã possuirá,
exclusivamente, a dimensão da sensibilidade de quem a ela assistiu? No fundo,
apenas ali se contou uma história. No Bairro da Fontainhas em Lisboa. A
demolição. Uma família e a vendedeira de couves e alfaces. Alegrias, tristezas,
amizades, trabalhos, doenças, afectos e amarguras. Nada mais! Uma fábula de
carne e osso, sem mote mas com moral. Como em todas as histórias, só palavras e
imagens unidas pelo olhar da consciência de cada um. É assim, um filme pode
trazer todas as perguntas mas tem o direito de recusar o prémio das respostas
que lhe são exigidas. Porque, acima de tudo, ele é o símbolo das possíveis
escolhas.
Mas se um filme é sobretudo um símbolo, este revela-se na
beleza absoluta de cada um dos quadros sobrepostos. Uma beleza reencontrada,
unicamente, em obras como “Nostalgia” de Tarkovsky, “Mãe e Filho” de Sokurov ou
“Persona” de Bergman. E como nestas, aqui poderemos procurar o sinal
inevitável, o supremo símbolo da liberdade artística. A cena passa-se no
“quarto da meninas”. Vanda recebe nos seus domínios com a parcimónia que
caracteriza os sapientes, o agora despojado Pango. Através de planos
sucessivos, ali está ele sentado, mais ao longe Vanda, reclinada sobre a cama
e, lá atrás, na parede marcada, apenas uma fotografia. Um passado.
Vanda diz: «Mas é a vida que a gente quer, é esta.»
Pango responde: “Não, não é a vida que a gente quer, parece
que é a vida que a gente é obrigada a ter. Parece que já é um destino, é um
traço...”
Vanda insiste: “É a vida que uma pessoa quer, acho eu. Hoje
em dia é assim!”
Coincidência ou não, a peça decorria no palco ao mesmo tempo
em que era exibido o filme. Separados por séculos, formas, expressões e
músicas, ambos colocam no seu centro o mais sublime elemento da existência do
homem que é, em simultâneo, o mais profundo significado da obra de arte. Talvez
Empédocles estivesse a responder a Vanda. Talvez Vanda, involuntariamente,
encontrasse o verdadeiro sentido para a vida e o quisesse partilhar com o
filósofo, o poeta, o músico, o encenador, o realizador, o público. Se aos
deuses lhes retiraram o poder do discernimento, que os simples mortais possam
usar, então, esse dom que só a eles foi atribuído – o poder da liberdade, a
liberdade de escolher!
jef, maio 2001
«No Quarto da Vanda» de Pedro Costa, 2000. Com Vanda Duarte, Zita Duarte, Lena Duarte, António Moreno, Paulo Nunes, Paulo Gonçalves, Pedro Lanban, Fernando Paixão.
«A Morte de Empédocles» (1ª versão)
de Friedrich Hölderlin / Teatro da Cornucópia, Março 2001. Encenação: Luis
Miguel Cintra. Cenário e figurinos: Cristina Reis. Intérpretes: Rita Loureiro,
Sofia Marques, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra,
Ricardo Aibéo, João Grosso. Música: excertos das sonatas para piano de Franz
Schubert D 959 e D 960, interpretadas por Nuno Vieira de Almeida
«A Morte de Empédocles» de Friedrich
Hölderlin. Edição bilingue. Tradução e prefácio: Maria Teresa Dias Furtado. Relógio
D’Água Editores, 2001
«Schubert Piano Sonatas – D575, D894, D959, D960» por Alfred Brendel. Philips / Universal, 2001
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