segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Sobre o filme «Julieta dos Espíritos» de Federico Fellini, 1965


 































Este é um filme que sempre me deixa um lastro amargo, inquietante e constrangedor. Como se estivesse a ler um daqueles contos nefastos dos Irmãos Grimm. No meio de um ameno e delicado pinhal de pinheiros-mansos, situa-se uma casa encantada de bonecas, cercada por uma vedação branca e harmoniosa. Lá dentro vive uma princesa, bela, amorosa e discreta, de nome Giulietta (Masina), rodeada por duas criadas gentis, Elisabetta (Milena Vucotich) e Teresina (Elisabetta Gray). Com pompa, aguarda nessa noite o seu marido, Giorgio (Mario Pisu) para celebrar mais um aniversário de casamento. Mas Giorgio surge envolto numa multidão de convivas e amigos diletantes que lhe estragam a intimidade desejada. Mais tarde, pelo meio do sono e do sonho, Giorgio repetirá um nome: Gabriela!

Giulietta fará o percurso de tormenta num universo de cores intensas e saturadas, feito de descobertas medonhas, desilusões caladas e tentações que não deseja. Vive ela entre os arcanos mais poderosos que, afinal, são os espíritos íntimos mais débeis. Nem a inicial previsão do espírito Iris (Sandra Milo), distribuindo o amor por todos, nem a profecia final, feita do apelo aos amigos, se cumprirão. Giulietta ficará só, tal como Gelsomina n’«A Estrada» (1954). Só que Gelsomina morrerá na miséria mas, de certo modo, celebrada por todos quantos com ela contactaram, recordando-lhe o imenso amor, a sua música, enquanto Giulietta percorrerá o pinhal, simplesmente, entre as memórias que não desejou guardar.

Só, Giulietta percorrerá os belos palácios de cenários sem fim, as masmorras labirínticas, os elevadores escondidos na floresta, os segredos libidinosos e aquáticos do palacete de Fanny (Sandra Milo), entre o faustoso guarda-roupa e a monumentalidade dos chapéus usados por mulheres deslumbrantes.

Só, ficará Giullieta entre quem dela não se lembrará, enquanto Gelsomina será para sempre recordada.

Se Fellini acabou com o neo-realismo em «A Estrada», com este filme terá derrotado o drama onírico e psicanalítico. Na alma destas duas assombrosas personagens está imensa generosidade teatral de Giulietta Masina.


jef, agosto 2020

«Julieta dos Espíritos» (Giulietta degli Spiriti) de Federico Fellini. Com Giulietta Masina, Mario Pisu, Sandra Milo, Valentina Cortese, Caterina Boratto, Sylvia Koscina, Lucia Della Noce, Lou Gilbert, José de Villalonga, Miceli Picardi, Silvana Jachino, Elena Fondra, Milena Vucotich, Elisabetta Gray, Valeska Gert, Asoka Rubener, Alberto Plebani, Felice Fulchignoni, Anne Francine, Mario Conochia, Genius, Massimo Sarchielli, Fred Williams, Raffaele Guida. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Nino Rota. Cenários: Piero Gherardi, Luciano Riccieri, E. Benazzi Taglietti, Giantito Burchiellaro. Produção: Angelo Rizzoli. Itália / França, 1965, Cores, 129 min.

 

 

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