terça-feira, 11 de agosto de 2020

Sobre o livro «Metamorfoses» de Ovídio, Cotovia, 2007. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto










O compêndio das morais imoralidades

 

                  “A tal ponto a arte não se vê na arte!” (10.252)

Assim exclama Ovídio, narrando o desmedido amor platónico de Pigmalião perante a perfeição da estátua de marfim, aquela que será transformada na mais pura mulher de carne e osso por uma Vénus agradecida com tamanha devoção do artista. Se o poeta declara a ilusão misógina do escultor, abstraindo a consciência ao próprio conceito de arte, vem ele reclamar para si próprio exactamente o contrário. Ovídio sabe como esculpir o poema de modo a torná-lo uma obra de arte de contornos intemporais. Sabe, ainda, que a sua criatividade molda um passado fictício, real, mutante, fixando-o, para sempre, num futuro que ele desconhece mas que está seguro de que receberá a obra com tanto ou mais furor do que o seu efémero presente. Por isso, também ele, com justificada presunção, começa por convocar nada menos que as musas inspiradoras de Homero e Virgílio para terminar afirmando, tal como aqueles já o haviam feito, que escreve para que o seu espírito abrace a eternidade negada ao corpo temporal.     

É com este espirituoso engano, fazendo reflectir a arte na superfície da própria arte, que a falácia de Ovídio opera. Um poema colossal é construído, verso após verso, ao longo de quinze livros e de centenas de episódios, adaptando uma cronologia histórica que une a origem do universo ao elogio contemporâneo de Júlio César e Augusto. Uma linha ininterrupta que termina no futuro dos futuros: «Metamorfoses» de Públio Ovídio Nasão!

É esta a sua essência, este o seu corpo. A sua perene liberdade.

Porque a liberdade começa no próprio título, ou seja, em “formas mudadas”, na mudança, no contínuo novo, na eterna dialéctica, na discussão pública da ideia, no protótipo democrático de uma Grécia que Ovídio altera com a consciência programática e legisladora de uma Roma que, por sua vez, também se transforma de república em império. Uma plenitude criativa que reside na certeza do constante, eterno e universal, fluir das essências que desaparecem para, depois, reaparecerem em novos corpos adaptados. Não será por acaso que o poeta dá a palavra final a Pitágoras (15.60-478), transformando-lhe o discurso em clássica (moderna) acção filosófica. É na convicção formal desse discurso recebido de uma Grécia clarividente que ele faz ancorar a sua prática poética. Ele que é conhecedor da tradição helénica e sabe que o herói é o que pratica actos heróicos, possuindo estes a devida correspondência na ciência pública da palavra. Ovídio recupera a dialéctica como primeira metamorfose da ideia, colocando a acção do valente Ájax frente à retórica do “velhaco” (13.712), “cobarde ou audacioso” (14.671) Ulisses, ao disputarem as armas do malogrado Aquiles (13.1-398). Também escorado pela formulação épica, tão vernácula quanto popular, o poeta vai deleitando-se a abusar de magníficas narrativas de valentia: “Perseu e Fineu” (livro 5) e “A batalha dos Lápitas e Centauros” (livro 12); ou revertendo tal ímpeto viril para a ira dos deuses: “Níobe e Latona” (livro 6) e “a morte de Hércules” (livro 9).

Porém, “Metamorfoses” coloca-se acima desta ordem moral imoral, impondo até, com recorrência, a ideia da inocência do erro humano perante a perversa e omnisciente genealogia divina, regida pelo inevitável adultério de Júpiter e pela intolerância vingativa de Juno. Acima de tudo, Ovídio parece apostado em brincar com todas as peças que o inebriante jogo de personagens lhe proporciona, manipulando-as com destreza, ao sabor da sua veia criativa, treinada nas anteriores obras amorosas. O poeta sabe que ludibria quando apresenta uma intrincada teia de factos irreais, montada segundo uma cronologia de índole histórica, sequência essa também falaciosa, já que grande número de histórias são contadas dentro de outras histórias, onde os novos narradores associam, no presente, lendas mais antigas. É, certamente, no campo lúdico da literatura que podemos situar essa concêntrica ordem diegética em que a multiplicidade das aspas vai revelando os simultâneos discursos directos. E se Ovídio pode enganar, narrando casos lendários em subtil miscelânea com factos históricos, “Metamorfoses” torna-se um caso sério e verídico ao reconhecer-se como um dos maiores arquivos da gigantesca tradição cultural greco-latina.

Porém, se o poeta se demarca relativamente ao vínculo moral das histórias, quantas vezes irónico, com a constante introdução de parêntesis, em genial intromissão do narrador, chamando a atenção do leitor distraído para a sua opinião explícita, a obra, naturalmente, reflecte a moral do escritor perante a sociedade romana, consciente da importância política da poesia na definição pública das ideias. Não pode deixar de ser intencional a já referida longa dissertação de Pitágoras relativamente à partícula final dedicada ao contemporâneo e Augusto Octávio, como inesquecível é a carga poética imposta às descrições em “a Fome” (livro 8), “O Rumor” (livro 12) ou “Báucis e Filémon” (livro 8).

Mas se é possível questionar a dialéctica moral do poema, já indiscutível parece ser a sua ordem literária. Ou seja, o seu maior poder é a liberdade literária. «Metamorfoses» representa um exaustivo compêndio da arte de bem narrar e de bem descrever, uma trama sinuosa onde, sobretudo, interessa a fruição da escrita e da leitura, num jogo onde o gato e o rato se metamorfoseiam entre si, a começar pela ironia de um épico dedicado a formigas, rãs, centauros e ciclopes, a que se sobrepõe as pérfidas intenções de excelsas divindades, os actos guerreiros de heróis, as incríveis manobras dos humanos ou o elogio aos estadistas. Profundo conhecedor da essência passional, tanto na vertente masculina como na feminina, Ovídio surge como mestre absoluto da narração do firmamento do amor desentendido, cruzando-o com o maravilhoso descritivo das íntimas geografias, de lagoas, grutas e florestas, ou dos amplos planisférios e paisagens aéreas: a inglória corrida celeste de Faetonte (livros 1 & 2), o infausto suspense de Bíblis (livro 9) ou Mirra (livro 10), a cénica tempestade em “Céix e Alcíone” (livro 11), a trágica narração do amor entre Píramo e Tisbe (livro 4) ou o humorístico bucólico cantar de Polifemo dedicado a Galateia (livro 13).

Deste modo, Ovídio contradiz Pigmalião, fazendo rever as múltiplas formas artísticas no espelho das outras tantas leituras de uma obra de arte absoluta. A arte sobre a arte, num círculo fechado que, a cada novo giro, consolida a eterna originalidade da obra com a ininterrupta recriação do mundo, um mundo edificado pelo constante diálogo entre os homens, criando sempre novas qualidades para a matéria do pensamento. Uma obra completa, um universo que não seria possível ler, agora, em português, sem a sua consequente transformação pelo tradutor (também amável poeta) Paulo Farmhouse Alberto, que faz ainda inserir, em mais um cuidadoso volume dos Livros Cotovia, duas leituras complementares: uma geográfica, com os mapas mediterrânicos impressos nas guardas do livro; a outra filogenética, com um glossário que ajuda a percorrer o fio da mais complexa família divina.

“Pois quando a humidade e o calor atingem certo equilíbrio,

eles concebem, e da união dos dois nascem todas as coisas.

E embora o fogo combata a água, uma humidade quente

tudo gera, e a concórdia discordante favorece a procriação.”

(1.430-433)

jef, setembro 2007

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