O compêndio das morais imoralidades
“A tal ponto a arte não se vê na arte!” (10.252)
Assim exclama Ovídio, narrando o desmedido amor platónico de
Pigmalião perante a perfeição da estátua de marfim, aquela que será
transformada na mais pura mulher de carne e osso por uma Vénus agradecida com
tamanha devoção do artista. Se o poeta declara a ilusão misógina do escultor,
abstraindo a consciência ao próprio conceito de arte, vem ele reclamar para si
próprio exactamente o contrário. Ovídio sabe como esculpir o poema de modo a
torná-lo uma obra de arte de contornos intemporais. Sabe, ainda, que a sua
criatividade molda um passado fictício, real, mutante, fixando-o, para sempre,
num futuro que ele desconhece mas que está seguro de que receberá a obra com
tanto ou mais furor do que o seu efémero presente. Por isso, também ele, com
justificada presunção, começa por convocar nada menos que as musas inspiradoras
de Homero e Virgílio para terminar afirmando, tal como aqueles já o haviam
feito, que escreve para que o seu espírito abrace a eternidade negada ao corpo
temporal.
É com este espirituoso engano, fazendo reflectir a arte na
superfície da própria arte, que a falácia de Ovídio opera. Um poema colossal é
construído, verso após verso, ao longo de quinze livros e de centenas de
episódios, adaptando uma cronologia histórica que une a origem do universo ao
elogio contemporâneo de Júlio César e Augusto. Uma linha ininterrupta que termina
no futuro dos futuros: «Metamorfoses» de Públio Ovídio Nasão!
É esta a sua essência, este o seu corpo. A sua perene
liberdade.
Porque a liberdade começa no próprio título, ou seja, em
“formas mudadas”, na mudança, no contínuo novo, na eterna dialéctica, na
discussão pública da ideia, no protótipo democrático de uma Grécia que Ovídio
altera com a consciência programática e legisladora de uma Roma que, por sua
vez, também se transforma de república
Porém, “Metamorfoses” coloca-se acima desta ordem moral
imoral, impondo até, com recorrência, a ideia da inocência do erro humano
perante a perversa e omnisciente genealogia divina, regida pelo inevitável
adultério de Júpiter e pela intolerância vingativa de Juno. Acima de tudo,
Ovídio parece apostado em brincar com todas as peças que o inebriante jogo de
personagens lhe proporciona, manipulando-as com destreza, ao sabor da sua veia
criativa, treinada nas anteriores obras amorosas. O poeta sabe que ludibria
quando apresenta uma intrincada teia de factos irreais, montada segundo uma
cronologia de índole histórica, sequência essa também falaciosa, já que grande
número de histórias são contadas dentro de outras histórias, onde os novos
narradores associam, no presente, lendas mais antigas. É, certamente, no campo
lúdico da literatura que podemos situar essa concêntrica ordem diegética em que
a multiplicidade das aspas vai revelando os simultâneos discursos directos. E
se Ovídio pode enganar, narrando casos lendários em subtil miscelânea com
factos históricos, “Metamorfoses” torna-se um caso sério e verídico ao reconhecer-se
como um dos maiores arquivos da gigantesca tradição cultural greco-latina.
Porém, se o poeta se demarca relativamente ao vínculo moral
das histórias, quantas vezes irónico, com a constante introdução de parêntesis,
em genial intromissão do narrador, chamando a atenção do leitor distraído para
a sua opinião explícita, a obra, naturalmente, reflecte a moral do escritor
perante a sociedade romana, consciente da importância política da poesia na
definição pública das ideias. Não pode deixar de ser intencional a já referida
longa dissertação de Pitágoras relativamente à partícula final dedicada ao
contemporâneo e Augusto Octávio, como inesquecível é a carga poética imposta às
descrições em “a Fome” (livro 8), “O Rumor” (livro 12) ou “Báucis e Filémon”
(livro 8).
Mas se é possível questionar a dialéctica moral do poema, já
indiscutível parece ser a sua ordem literária. Ou seja, o seu maior poder é a
liberdade literária. «Metamorfoses» representa um exaustivo compêndio da arte
de bem narrar e de bem descrever, uma trama sinuosa onde, sobretudo, interessa
a fruição da escrita e da leitura, num jogo onde o gato e o rato se
metamorfoseiam entre si, a começar pela ironia de um épico dedicado a formigas,
rãs, centauros e ciclopes, a que se sobrepõe as pérfidas intenções de excelsas
divindades, os actos guerreiros de heróis, as incríveis manobras dos humanos ou
o elogio aos estadistas. Profundo conhecedor da essência passional, tanto na
vertente masculina como na feminina, Ovídio surge como mestre absoluto da
narração do firmamento do amor desentendido, cruzando-o com o maravilhoso
descritivo das íntimas geografias, de lagoas, grutas e florestas, ou dos amplos
planisférios e paisagens aéreas: a inglória corrida celeste de Faetonte (livros
1 & 2), o infausto suspense de Bíblis (livro 9) ou Mirra (livro 10), a
cénica tempestade em “Céix e Alcíone” (livro 11), a trágica narração do amor
entre Píramo e Tisbe (livro 4) ou o humorístico bucólico cantar de Polifemo dedicado
a Galateia (livro 13).
Deste modo, Ovídio contradiz Pigmalião, fazendo rever as
múltiplas formas artísticas no espelho das outras tantas leituras de uma obra
de arte absoluta. A arte sobre a arte, num círculo fechado que, a cada novo
giro, consolida a eterna originalidade da obra com a ininterrupta recriação do
mundo, um mundo edificado pelo constante diálogo entre os homens, criando
sempre novas qualidades para a matéria do pensamento. Uma obra completa, um
universo que não seria possível ler, agora, em português, sem a sua consequente
transformação pelo tradutor (também amável poeta) Paulo Farmhouse Alberto, que
faz ainda inserir, em mais um cuidadoso volume dos Livros Cotovia, duas leituras
complementares: uma geográfica, com os mapas mediterrânicos impressos nas
guardas do livro; a outra filogenética, com um glossário que ajuda a percorrer
o fio da mais complexa família divina.
“Pois quando a humidade e
o calor atingem certo equilíbrio,
eles concebem, e da união
dos dois nascem todas as coisas.
E embora o fogo combata a
água, uma humidade quente
tudo gera, e a concórdia
discordante favorece a procriação.”
(1.430-433)
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