Ao unirmos a sintomática cena inicial com Gelsomina (Giulietta
Massina) a chegar à beira-mar, de gravetos às costas, e a ser chamada pelo
bando de miúdos que a avisam que deve ir a correr pois a sua irmã Rosa morreu e
a mãe acaba de a vender ao viúvo e saltimbanco Zampanó (Anthony Quinn) por
10.000 liras, devendo seguir viagem de imediato; sim, se unirmos esta cena com a
final, a mais poética e deslumbrante, em que Zampanó se enrosca e se perde nas
mesmas areias da beira-mar, percebemos que a intenção primeira de Fellini não é,
certamente, a mobilização da sociedade para alterar a sua crassa injustiça
social mas a de criar um plano emocional que espelhe o profundo interior trágico
das personagens. Uma tragédia que está latente, suspensa no ar até que surge um
funâmbulo na corda bamba, louco ternurento ou bobo desastrado (Richard Basehart).
Nessa altura, o espectador sabe que nada ficará a salvo, deve preparar-se para
o pior. Porém, Gelsomina (e essa é o fulcro da tragédia) é amada por todos,
acarinhada por todos, miúdos, graúdos, espectadores, comensais, freiras; gratidão
recebida com uma espécie de ingenuidade santificada. Gelsomina é amada até por
Zampanó.
Deste modo, o cinema regressava do programático neo-realismo ao
mais puro e desprezado romantismo. Os acólitos cineastas e cinéfilos não o
perdoaram. O público, pelo contrário.
Fellini criou, aqui, o seu futuro mundo circense, dramático,
operático. Nunca mais largou Giuletta Massina ou Nino Rota. Nunca mais deixou
de colocar os actores, quantas vezes não-actores, no centro da rua e a rua como
cenário realista. Nunca mais prescindiu de colocar decores, cenas e falas
inexplicados, mas cenicamente poéticas, labirinticamente oníricas.
Talvez seja aqui que Federico Fellini tenha averbado no
dicionário o seu adjectivo. “Felliniano”.
jef, agosto 2020
«A Estrada» (La Strada) de Federico Fellini. Com Giulietta Massina, Anthony Quinn, Richard Basehart, Aldo Silvani, Marcella Rovere, Mario Passante. Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli. Fotografia: Otello Martelli. Música: Nino Rota. Produção: Dino De Laurentiis. Itália, 1954, P/B, 94 min.
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