terça-feira, 25 de agosto de 2020

 











«Utopia Americana. Significará isto ironia? Será uma piada? Estarei a falar a sério? E de que modo? Refiro-me ao passado ou ao futuro? Será pessoal ou político? Estas canções não descrevem um imaginário ou um lugar impossível possível mas sim uma tentativa de retratar o mundo em que agora vivemos. Muitos de nós, suspeito, não estamos satisfeitos com esse mundo – o mundo que fizemos para nós mesmos – bem, tem que ser assim? Estará aí outro dia? Estas canções são sobre esse olhar e essas interrogações.» David Byrne na ‘American Utopia’.

 

Há muito que David Byrne usa um determinado método de trabalho para estruturar os dias, pensar, olhar o mundo, criar, escrever, publicar, escutar e fazer-se ouvir. Através desse método, utiliza o passado não como tábua de salvação mas como sedimento que, sob a pressão dos anos, vai formando rocha metamórfica. No presente. Talvez por isso, não inclua no duplo álbum ao vivo «Psycho Killer» (faixa que talvez tenha mesmo sido tocada na Broadway…), escolhendo antes «Road to Nowhere» para ir terminando o espectáculo. Uma espécie de arquitectura, argamassa estruturada e consciente, que o leva a concluir o primeiro disco com «Glass, Concrete & Stone» vindo do anterior álbum de originais, de título sintomático «Grown Backwards» (2004).

Após os oito álbuns editados com os Talkins Heads e dos posteriores onze, a solo ou em associação, há um outro componente mineral que regressa sistematicamente para lhe rever, ajustar e redefinir o citado método. Um procedimento paralelo mas igualmente persistente: Brian Eno. Essa companhia pela qual surgiu «Remain in Light» dos Talkings Heads (1980) ou um objecto tão indefinido quanto secular de nome «My Life in the Bush of Ghosts» (1981).

Novamente com Brian Eno, surge em 2018 o disco «American Utopia». Sobrepõe-se-lhe uma recente matriz de luminosidade laboral de sintoma pop e cariz construtiva. Com ele vêm «I Dance Like This», «Every Day Is a Miracle», «Everybody’s Coming to My House». Junta-se-lhe «One Fine Day» do álbum «Everything That Happens Will Happen Today» (2008). O mundo pode não estar a ser assim tão bem escrito sobre as linhas tortas que o homem lhe tem imposto mas a última coisa que deve acontecer é perder-se a consciência e a vontade de que tudo pode ser de novo, social, cultural, ecológica e politicamente, revertido e melhorado. A meio da canção ele diz: “We’re only tourists in this life / only tourists but the view is nice”. Há sempre um certo milagre na vida através do qual tudo pode ser amavelmente contemplado, generosamente negociado ou raivosamente exigido. Por isso, aqui entra também, quase no fim, a canção de combate tribal de Janelle Monáe «Hell You Talmbout» (2015).

David Byrne sempre preferiu a percussão da tribo africana, com os pés a exigirem levantar a poeira vermelha, ao batuque do hip-hop urbano e sincrético, suavemente adoçado por sapatilhas violentas. Oiçam-se, assim, as versões de «Burning Down the House» ou «Blind».

Se existe um espírito criativo absolutamente livre ele é o de David Byrne, nada está fora do alcance da sua integração musical. Ele prefere cobrir o álbum de originais com as imagens do esquecido artista plástico nova-iorquino Purvis Young e despir o palco de artefactos, mesas, cadeiras, sapatos, cabos eléctricos. Apenas uma cortina de correntes metálicas (Maira Kalman) e os 13 músicos vestidos de clássicos fatos cinzentos (HeatherMary Jackson). A ausência obriga o essencial a descobrir-se, a dança a mover-se, as palavras a assumir nova consciência musical iluminando o mundo.

E está aí a chegar o filme realizado por Spike Lee. Atenção!

 

jef, agosto 2020

 

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