quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sobre o livro “A velha e outras histórias” de Daniil Harms, Assírio & Alvim, 2007. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Introdução de Filipe Guerra.











A revolução na arte realista

Esta edição tem tudo para ser especial. Primeiro, tem a tradução do russo para língua portuguesa de Nina Guerra e Filipe Guerra. Segundo, pela primeira vez, apresenta-se em Portugal uma colectânea de textos do escritor e dramaturgo Daniil Harms (ou Daniil Kharms, segundo a nomenclatura inglesa), um dos fundadores na U.R.S.S. da OBERIU, a Associação da Arte Real. Daniil Harms subscreveu o manifesto dessa associação, proclamando, em 1927, uma nova leitura para a “arte revolucionária de esquerda”. Abstraindo os vocábulos (e todo o objecto artístico) do seu normal enquadramento sintáctico, aqueles retomariam, na percepção dos receptores, o seu conteúdo semântico original, ou seja, transformavam-se em arte real e, portanto, revolucionária. Como é óbvio, mais do que as palavras, as sessões de leitura ou as apresentações dramáticas deste conjunto de criadores, e de Harms em particular, tornaram-se mais revolucionárias do que a linha assumida, na altura, pela própria Revolução Russa. O realismo destes textos que, hoje em dia, poderá ser tomado por surrealismo, torna-se progressivamente mais incómodo levando à perseguição e morte da grande parte dos seus autores pelo aparelho político soviético. Em 1941, Harms volta a ser preso, após o tormento do desemprego, da fome e da incompreensão artística. No ano seguinte, a sua mulher é informada da sua morte. No conto “A Velha”, que muito justamente dá título ao livro, cruza-se a realidade trágica existencialista do mundo de Dostoiévski com a devota "surrealidade" futurista de Nikolai Gógol, condensando o espírito de uma Europa que, hoje ainda, se vê dilacerada entre o génio e a iniquidade. Por último, a presente edição torna-se mais importante pela sua organização precisa e sintética. Não condicionando a leitura da obra pelas circunstâncias conturbadas da vida do seu autor, não deixa de a enquadrar historicamente com o conteúdo dos seus anexos e introdução.


jef, abril 2008

 

 

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