A arte de Pasolini, de certo modo, assusta, de tal modo é
realista, integra, despudorada, livre de normas e peias, sempre inconclusiva
apesar, de novo de certo modo, permanentemente moral porque política. Inconclusiva porque
infinita e aberta aguardando a nova visão que o espectador lhe dará. Os
filmes de Pasolini assentam em primeiro lugar na ideia abstracta que surge da literatura.
«Decameron» aproxima-se cenicamente da arquitectura geográfica
de «O Evangelho Segundo São Mateus» (1964), onde as personagens centrais são a
poeira, as pedras e o caminho, percorridos pelos pés, quantas vezes descalços,
em jeito de peregrinação e demanda. Aqui, já os pés fogem das
trapaças, de ladrões e agiotas, dos pecados, correndo à procura da redenção no
sexo e na palavra divina. Também as caras “bruegelianas”, o riso, o corpo e os
sexos desnudados são tão veementemente teatrais, demorando-se a câmara
observando longamente as rugas, o suor e a falta de dentes, que tais retratos
desmontam qualquer filtro estético expressionista. Por isso, talvez nos
assustem um pouco e o riso leva consigo um ligeiro pedido de desculpas. A humanidade é
mesmo assim, encantadoramente devassa, cruelmente devota. Talvez feia. Talvez
bonita.
Ao rever o filme é impossível não recordar a volição da pintura de «Andrei Rublev» de Andrei Tarkovsky (1966) ou as cenas movimentadas, a câmara correndo entre figurantes, as personagens descendo e subindo escadas, de Jean Renoir.
Este é o primeiro da «Trilogia da Vida» («Contos de Canterbury»
de 1971 e «As Mil e Uma Noites» de 1974). Estamos a cinco anos de «Saló ou 120
Dias de Sodoma» e do seu assassinato.
jef, agosto 2020
«Decameron» (Il Decameron) de Pier Paolo Pasolini. Com Franco Citti, Nineto Davoli, Pier Paolo Pasolini, Angela Luce, Silvana Mangano. Argumento: Pier Paolo Pasolini segundo «Decameron» de Bocaccio. Fotografia: Tonino Delli Colli. Música: Ennio Morricone. Alemanha, Itália, França, 1970, Cores, 107 min.
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