O Manel gosta de ler as paredes
O Manel conhece bem as paredes da cidade. Melhor, o Manel é
um rapaz que gosta de ler as palavras inscritas nas paredes da cidade. Diz que
assim entende melhor as pessoas que se escondem no espaço fininho que existe
entre a caliça e a tinta das ditas palavras. Corrijo, das ditas escritas palavras.
Porque as paredes, diz, são como as palavras ou a música que elas emitem quando
falamos. Por isso, há muito, começou a responder ao que lia nos rabiscos
encontrados entre portas, ombreiras e janelas. Também em rodapés e corrimãos, escritas
baixinho como se não fossem para serem ouvidas. Uma espécie de cartas sonoras,
musicais. Alguns chamavam crónicas às cartas quando as liam, abrindo o envelope
ou o jornal. Porque ele não esquecia os jornais de parede da antiga China,
estrelas amarelas, livros vermelhos, tigres de papel. Ou os escritos que afirmavam,
franceses, que que era proibido proibir. Ou, ainda, os que impediam os soldados
de voltarem para a guerra e todos de voltarem ao fascismo. Quando ninguém podia
conversar com as paredes. Escrever aquelas crónicas-canções era como que dar
liberdade aos que se mantinham por trás da caliça, entre tijolos e argamassa.
O Manel dá muita importância à alegria de escutar as palavras
nas paredes e de lhes responder em papel. Como não tem vocação de sonhador,
prefere agir. Pega na trincha e no balde de tinta e escreve. Recorda-se do que,
a tremer, fala ao Mostrengo: «El Rei Dom João II!». Ou o outro que, rompendo com
a saudade, já nada teme e afirma-se o homem do leme.
jef, março 2020
* Perífrases e quarentena
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