domingo, 12 de abril de 2020

Sobre o livro «William Saroyan – Antologia do Conto Moderno» Atlântida, 1947. Selecção, tradução e prefácio de José Borrego e Victor Palla.


 



















«Não sei nada de gramática e pontuação. Tenho um sistema de gramática e de pontuação cá muito meu. A base deste sistema é: ser lúcido e escrever cada ideia por sua vez. Nunca falo de literatura. Falo a linguagem de todos os mandriões.»

Os prefácios escritos por Saroyan e apresentados neste volume (que o meu pai comprou, em Outubro de 1949, “num dia em que fui à praia”) são clarividentes, despudorados, mas incluem uma enorme dose de prosápia e falta de vergonha, facto que apenas engrandece o autor. Ele não teme dizer tudo, com elegância e humor, o que lhe vem à ideia. Diz na entrevista que aos nove anos nunca “pensou em escrever” apenas começou a escrever.

Os seus contos são isso mesmo. Quase em jeito de crónicas vindas de uma memória amada ou de um mundo deliciosamente agreste. São ternos, delicados, imediatos, cheios de humor e benevolência. Contam histórias, como en passant, de crianças respeitosamente irreverentes, de tios amavelmente loucos, de gentes de todas as origens que se juntam em Fresno, na Califórnia, onde William Saroyan nasceu e morreu (1908 –1981). A sua maior influência, e talvez genial desfaçatez, é ser americano dos seis costados mas amar acima de tudo a sétima costela vinda da sua família emigrada da Arménia. Conviveu com portugueses, espanhóis, gregos, judeus, filipinos, viajou por todo o mundo, vendeu jornais, escreveu para cinema, trabalhou nas vinhas californianas. Serviu na Segunda Grande Guerra como soldado raso. Recusou um prémio Pulitzer, dizendo: “O capital não tem direito de patrocinar a arte”. E ainda escreve:

«Mas o conselho mais sensato, creio, que se pode dar a um escritor é o seguinte: procura aprender a respirar fundo, a saborear verdadeiramente quando comes, a dormir verdadeiramente quando adormeces. Procura quanto possível estar inteiramente vivo, com toda a tua força; e quando rires ri a valer; e quando te zangares zanga-te que nem o diabo. Procura estar vivo. Deixa lá, que depressa morrerás.»

O humor, a ternura, a capacidade de desculpar, são o modo fundamental dos contos de Saroyan. Porém, um dos contos-chave que o elevou ao escaparate dos mundialmente famosos foi um texto curto, dilacerado, pungente. Alguém, ébrio de fome, dramaticamente só, sonha e trauteia a canção «O Rapaz do Trapézio Voador» enquanto percorre as ruas de uma cidade em ausência. Qualquer coisa muito forte entre o Raskolnikov de Dostoiévski e a «Fome» de Knut Hamsun.

Perto de 30 contos maravilhosos de um autor que, suspeito, é hoje injustamente esquecido.

A capa é deslumbrante, as pequeninas ilustrações também. O autor não vem creditado.

jef, abril 2020

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