Existe no espírito profundo do
Mestre-Realizador Jean Renoir uma vocação ecuménica tão marcada quanto a sua
propensão para a provocação. Para Renoir a humanidade é bela, diversa e una, e o
dever do artista no meio de uma sociedade mundial em guerra é, acima de tudo,
derrotar preconceitos e instigar à consciência colectiva.
Mas se Renoir ficasse por aqui, seria um génio apenas
politizado. O que o torna um dos maiores realizadores de sempre é esse espírito
diabolicamente criativo, irremediavelmente atrevido, apaixonadamente teatral,
marcadamente estético… (será que este facto trará qualquer coisa de
genético, vindo de seu pai, Auguste?)
Jean Renoir pela-se por realizar filmes de aventuras. Filmes de aventuras com aventuras lá dentro, saltando de peripécia em peripécia, de
cenário para cenário, de movimento em movimento, de rapidez em rapidez. Ele manobra a atenção do espectador como quer, do início
ao fim, afundando-a dentro da intriga que vai passando pelos episódios, do mais sério e social dos temas ao mais burlesco, da fuga mais
desesperada para a cena bucólica e tão comovente. É assim Jean Renoir. É
assim «A Grande Ilusão». A nossa grande ilusão de uma sociedade sem guerras e exposta através do estado maior da Arte Cinematográfica.
Dentro do filme contam-se história rigorosamente verdadeiras,
afirma o realizador, a si contadas por combatentes na Grande Guerra de
1914-1918.
Após o abate do avião na frente alemã, o capitão von
Rauffenstein (Erich von Stroheim) recebe com a maior deferência os
prisioneiros, o aristocrata Boieldieu (Pierre Fresnay) e o contramestre
Maréchal (Jean Gabin) que, mais tarde, serão transferidos para um campo de
prisioneiros oficiais onde se juntam a outros, entre os quais o banqueiro judeu
Rosenthal (Marcel Dalio). Aí, alguém olha para a janela e diz: «De um lado
crianças brincam como soldados e do outro soldados brincam como crianças.» Aí, os
prisioneiros promovem um espectáculo de
variedades para onde são convidados os oficiais alemães, os quais, no final,
têm de ouvir «A Marselhesa» cantada pelos prisioneiros aliados emocionalmente
travestidos de coristas. Aí, é também cavado um túnel de fuga mas que nunca
chega a ser utilizado por conta de mais uma mudança de cena. Na fortaleza
inexpugnável reencontram-se com alegria e cerimónia o alemão von Rauffenstein e
o francês Boieldieu. Aí,
o capitão fere mortalmente o amigo francês enquanto este vai subindo sucessivas
escadas “renoirianas” e, por fim, deposita uma flor sobre o cadáver. Deste modo,
Maréchal e Rosenthal conseguem fugir. Maréchal desconfiava do aristocrata, e desconfia
do judeu, mas reconciliam-se. Chegam a casa de uma pobre viúva alemã (Dita Parlo) que os
acolhe sem hesitar, sem mácula de desconfiança. Os laços restabelecem-se e a humanidade será maior.
Este é um dos maiores filmes anti-guerra que vi! Um dos grandes
filmes do mundo que devia ser visto por todos, neste momento, com o guião ao
lado, ou o libreto na mão, já que o que Jean Renoir filma são óperas.
Trágicas, cómicas e de uma beleza cénica comovente e absoluta.
jef, abril 2020
«A Grande Ilusão» (La Grande Illusion) de Jean Renoir. Com Pierre
Fresnay, Jean Gabin, Erich von Stroheim, Dita Parlo, Marcel
Dalio, Julien Carette, Jean Daste, Gaston Modot, Jacques Becker, Jean Dasté,
Georges Péclet, Sylvain Itkine, werner Florian. Argumento e Diálogos: Charles Spaak e Jean Renoir a
partir do romance de Rumer Godden. Fotografia: Christian Matras. Música: Joseph
Kosma. França, 1937, P/B, 109 min.
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