É impossível imaginar filme mais cândido sobre a culpa, a
desculpa, a morte e a libido. Imaginamos o gozo que terá tido o realizador ao
dar aos produtores e ao público um filme tão exótico e, ao mesmo tempo, tão
hitchcockiano. Colocar um cadáver no centro das paisagens bucólicas e dos
carvalhais outonais de Vermont, fotografados exemplarmente por Robert Burks. Afinal,
um cadáver (Harry) que não angustia nem assusta ninguém, nem sequer o pequenino
Arnie que gosta de trocar coelhos mortos por queques de mirtilo. Muito menos a
solteirona Miss Gravely (Mildred Natwick) que, à beira do morto, se encanta
pelo Capitão Albert Wiles (Edmund Gwenn) convidando-o para um chá e dizendo cerimoniosamente: «What
seems to be the trouble, Captain?». Ou a inocente Jennifer Rogers (Shirley
MacLaine) que oferece sorridente limonada ao pintor Sam Marlowe (John Forsythe) enquanto
este afirma que desejava pintá-la nua.
Neste conto de fadas campestre e idílico, todos são
simpáticos, caridosos, benevolentes, todos se desculpam mutuamente e percorrem
a floresta distraidamente onde nada de mal acontece. Excepto ao pobre Harry,
galã morto, sempre de fato impecável e meias coloridas, já que o encantador
vagabundo lhe tira os sapatos. Harry que, afinal, todos desejaram ver morto ou suspeitaram
ter matado. Mas sem culpa nem remorso. Por essa razão passam o filme a
enterrá-lo e a desenterrá-lo, sucessivamente, nesse princípio tão britânico de
misturar non sense, humor negro e cenários
teatrais, com árvores em palco, gravatas enfiadas por trás de quadros,
cadáveres escondidos na banheira, portas que se abrem sem qualquer explicação. Até o polícia Calvin Wiggs (Royal Dano), vendedor de carros em
segunda mão, consegue nenhuma prova em concreto, mas já a sua mãe (Mildred
Dunnock), que vende cidra e obras de arte à porta da sua mercearia, arranja um
milionário marchand que irá
satisfazer os desejos a todos.
Neste filme, tão maravilhoso quanto genial, tão amoral como estético (apresentando pela
primeira vez ao cinema a deslumbrante Shirley MacLaine), Hitchcocock deixa todos
de cara à banda. Parece estar a rir-se dele próprio nas, suspeito, que, em primeiro lugar, está a rir-se de todos nós.
E sem esquecer a magnífica partitura de Bernard Herrmann, inspirada e primaveril! A primeira para o mestre da intriga!
E sem esquecer a magnífica partitura de Bernard Herrmann, inspirada e primaveril! A primeira para o mestre da intriga!
jef, abril 2020
«O Terceiro Tiro» (The Trouble
with Harry) de Alfred Hitchcock. Com John Forsythe (Sam Marlowe); Edmund Gwenn
(Capitão Albert Wiles); Shirley MacLaine (Jennifer Rogers); Mildred Natwick
(Miss Gravely); Mildred Dunnock (Mrs. Wiggs); Royal Dano (Calvin Wiggs); Jerry
Mathers (Arnie Rogers); Parker Fennely (o milionário); Barry MacCollum (o
vagabundo); Dwight Marrfield (Dr, Greenbow). Argumento: John Michael Hayes
baseado no romance de John Trevor Story. Música: Bernard Herrmann. Canção: «Flaggin’
the Train to Tuscaloosa» Mack David / Raymond Scott. Genérico inicial de um travelling sobre um desenho de Saul Steinberg. Fotografia: Robert Burks.
EUA, 1955, Cores, 99
min.
Sem comentários:
Enviar um comentário