quinta-feira, 9 de abril de 2020

Sobre o filme «O Terceiro Tiro» de Alfred Hitchcock, 1955















É impossível imaginar filme mais cândido sobre a culpa, a desculpa, a morte e a libido. Imaginamos o gozo que terá tido o realizador ao dar aos produtores e ao público um filme tão exótico e, ao mesmo tempo, tão hitchcockiano. Colocar um cadáver no centro das paisagens bucólicas e dos carvalhais outonais de Vermont, fotografados exemplarmente por Robert Burks. Afinal, um cadáver (Harry) que não angustia nem assusta ninguém, nem sequer o pequenino Arnie que gosta de trocar coelhos mortos por queques de mirtilo. Muito menos a solteirona Miss Gravely (Mildred Natwick) que, à beira do morto, se encanta pelo Capitão Albert Wiles (Edmund Gwenn) convidando-o para um chá e dizendo cerimoniosamente: «What seems to be the trouble, Captain?». Ou a inocente Jennifer Rogers (Shirley MacLaine) que oferece sorridente limonada ao pintor Sam Marlowe (John Forsythe) enquanto este afirma que desejava pintá-la nua.

Neste conto de fadas campestre e idílico, todos são simpáticos, caridosos, benevolentes, todos se desculpam mutuamente e percorrem a floresta distraidamente onde nada de mal acontece. Excepto ao pobre Harry, galã morto, sempre de fato impecável e meias coloridas, já que o encantador vagabundo lhe tira os sapatos. Harry que, afinal, todos desejaram ver morto ou suspeitaram ter matado. Mas sem culpa nem remorso. Por essa razão passam o filme a enterrá-lo e a desenterrá-lo, sucessivamente, nesse princípio tão britânico de misturar non sense, humor negro e cenários teatrais, com árvores em palco, gravatas enfiadas por trás de quadros, cadáveres escondidos na banheira, portas que se abrem sem qualquer explicação. Até o polícia Calvin Wiggs (Royal Dano), vendedor de carros em segunda mão, consegue nenhuma prova em concreto, mas já a sua mãe (Mildred Dunnock), que vende cidra e obras de arte à porta da sua mercearia, arranja um milionário marchand que irá satisfazer os desejos a todos.

Neste filme, tão maravilhoso quanto genial, tão amoral como estético (apresentando pela primeira vez ao cinema a deslumbrante Shirley MacLaine), Hitchcocock deixa todos de cara à banda. Parece estar a rir-se dele próprio nas, suspeito, que, em primeiro lugar, está a rir-se de todos nós.

E sem esquecer a magnífica partitura de Bernard Herrmann, inspirada e primaveril! A primeira para o mestre da intriga!

jef, abril 2020

«O Terceiro Tiro» (The Trouble with Harry) de Alfred Hitchcock. Com John Forsythe (Sam Marlowe); Edmund Gwenn (Capitão Albert Wiles); Shirley MacLaine (Jennifer Rogers); Mildred Natwick (Miss Gravely); Mildred Dunnock (Mrs. Wiggs); Royal Dano (Calvin Wiggs); Jerry Mathers (Arnie Rogers); Parker Fennely (o milionário); Barry MacCollum (o vagabundo); Dwight Marrfield (Dr, Greenbow). Argumento: John Michael Hayes baseado no romance de John Trevor Story. Música: Bernard Herrmann. Canção: «Flaggin’ the Train to Tuscaloosa» Mack David / Raymond Scott. Genérico inicial de um travelling sobre um desenho de Saul Steinberg. Fotografia: Robert Burks. EUA, 1955, Cores, 99 min.

Sem comentários:

Enviar um comentário