sábado, 9 de maio de 2020

O André une os pontos com o lápis













O André une os pontos com o lápis.


O André não teme percorrer a direcção que tomam as linhas que desenha. Corrijo. O André faz do caminho que leva o traço do seu lápis uma espécie de porto de abrigo ou de velho do restelo que, ao mesmo tempo, o protege e o intriga. Também o revela a si próprio, como uma partida que coincide exactamente com o lugar de chegada. A linha assim transformar-se num ponto único.

De manhã, risca uma linha quebrada, segmentos de recta unidos por vértices agudos, a fingirem-se hostis, que se alongam em ruas ou cruzamentos de uma cidade, perpendiculares aos candeeiros que as iluminam. As pessoas escondem-se atrás das janelas, de gelosias, de muros, por baixo dos telhados oblíquos, afastados de parques misteriosos ou de cães perdidos. São ápices criados por esses segmentos curtos que vão do número 1 ao número 103, finalmente, revelá-lo ou, melhor, figurá-lo. Como nos passatempos antigos dos jornais infantis.

À tarde, o café do Senhor Abel reabre. O André toma um café, ouve a conversa da vizinha confinada por uma constipação repentina, e volta para casa a pensar em afiar dois lápis. O contorno aproxima-se do papel manteiga, quase transparente, onde resolve experimentar a ponta afiada da grafite. A superfície enruga-se ligeiramente pela linha curva que, agora, anula os vértices e as arestas, adoçando-as. Surge um nariz, um pulso, um cotovelo, dois lábios. Corrijo novamente. Surgem dois narizes, dois pulsos, dois cotovelos, quatro lábios. Um abraço.

jef, maio 2020

* perífrases e quarentena

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