O André une os pontos com o lápis.
O André não teme percorrer a direcção que tomam as linhas que
desenha. Corrijo. O André faz do caminho que leva o traço do seu lápis uma
espécie de porto de abrigo ou de velho do restelo que, ao mesmo tempo, o
protege e o intriga. Também o revela a si próprio, como uma partida que
coincide exactamente com o lugar de chegada. A linha assim transformar-se num
ponto único.
De manhã, risca uma linha quebrada, segmentos de recta unidos
por vértices agudos, a fingirem-se hostis, que se alongam em ruas ou
cruzamentos de uma cidade, perpendiculares aos candeeiros que as iluminam. As
pessoas escondem-se atrás das janelas, de gelosias, de muros, por baixo dos
telhados oblíquos, afastados de parques misteriosos ou de cães perdidos. São ápices
criados por esses segmentos curtos que vão do número 1 ao número 103,
finalmente, revelá-lo ou, melhor, figurá-lo. Como nos passatempos antigos dos
jornais infantis.
À tarde, o café do Senhor Abel reabre. O André toma um café,
ouve a conversa da vizinha confinada por uma constipação repentina, e volta
para casa a pensar em afiar dois lápis. O contorno aproxima-se do papel
manteiga, quase transparente, onde resolve experimentar a ponta afiada da
grafite. A superfície enruga-se ligeiramente pela linha curva que, agora, anula
os vértices e as arestas, adoçando-as. Surge um nariz, um pulso, um cotovelo,
dois lábios. Corrijo novamente. Surgem dois narizes, dois pulsos, dois
cotovelos, quatro lábios. Um abraço.
jef, maio 2020
* perífrases e quarentena
Sem comentários:
Enviar um comentário