domingo, 3 de maio de 2020

Sobre o filme «Os Filhos da Noite» de Nicholas Ray, 1949















Poucos filmes existirão onde a condição humana surja tão descarnada e, ao mesmo tempo, tão visceral. Ele diz-nos que mais inconsequente que o amor, só será mesmo a ternura.

O primeiro filme de Nicholas Ray parece ser o seu epitáfio. A cópia de «Lightning Over Water» de Wim Wenders (1980), o último filme-espelho realizado momentos antes da sua morte. Sem dúvida, copia «Fúria de Viver» (1955) ou muitos outros filmes seus incluindo «Cega Paixão» (1952) ou «Jonhny Guitar» (1954).

Como em qualquer tragédia clássica sabemos para onde vamos. No início, mesmo antes do genérico, os amantes beijam-se e espantam-se, segundos depois, com a proximidade da câmara, com o nosso olhar. Algum deus ex-machina escreve: «This boy and this girl were never properly introduced to the world we live in» (Este rapaz e esta rapariga nunca foram propriamente apresentados ao mundo em que vivemos). Está a tragédia anunciada. Está também escrito o que Nicholas Ray tentará a vida toda. Será mesmo isto o que cada um de nós vai sentindo com o passar do tempo. O mundo nunca nos chega propriamente a ser apresentado. Talvez Immanuel Kant, um dia, nos explique como a coisa funciona.

Bowie (Farley Granger) foge da prisão ajudado pelo gangue e refugia-se em casa do pai de Keechie (Cathy O’Donnell). São duas quase crianças que nada sabem do amor mas, num mundo perturbado, quase inacabado, se apaixonam. Também desconhecem como se beija. Também sabem que devem fugir mas não sabem de que mundo nem para que mundo. Afinal, nunca lhes foi apresentado.

«Os Filhos da Noite» é um filme síntese. É um filme onde a linguagem é crua, quase anti-literária, quase novelesca de tão sintética. «It could be» resume por repetição a cena crucial do início da paixão daqueles dois quase adolescentes. Tão ingénuos e seminais que surgem, no início, sem corpo formado, escondidos, foragidos de uma sociedade inexistente, quase em repulsa desse corpo, seres andrógenos que anseiam o que mais temem e, ao mesmo tempo, seres desejados pela sociedade madrasta que os quer devorar.

Um dos filmes mais belos e comoventes que alguma vez vi.

jef, maio 2020

«Os Filhos da Noite» (They Live by Night) de Nicholas Ray. Com Farley Granger, Cathy O’Donnell, Howard da Silva, Helen Craig, Jay C. Flippen, Will Wright, Marie Bryant, Ian Wolfe, Harry Harvey, Jim Nolan, Teddy Infuhr, Curt Conway, Regan Callais, Frank Marlowe, Charles Meredith, J. Louis Johnson. Argumento: Charles Schnee, a partir da adaptação por Nicholas Ray do romance “Thieves Like Us” de Edward Anderson. Fotografia: George E. Diskant. Música: Leigh Harline. EUA, 1949, P/B, 95 min.

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