terça-feira, 26 de maio de 2020

Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa.












Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa.
Da família Laridae ou a sombra do homem.


«Uma gaivota pousou na praia, duma espiral de asas que rondavam em pairo vagaroso e calado, e começou a marchar, perto de nós, marcando na superfície húmida silhuetas cuneiformes. Duas, três, mais gaivotas, saltaram, parecia que a espiral se ia desenrolando, de cima, vertendo-se para o solo. Asas enclavinhadas, toque em terra, asas recolhidas, passeio grave e peitudo, observação suspeitosa.»
Apuros de um Pessimista em Fuga de Mário de Carvalho


Não será necessário recordar o caso cinematográfico, pré-psicótico, de «Os Pássaros» (Alfred Hitchcock, 1963), ou a delicodoce espiritualidade de «Fernão Capelo Gaivota» (Richard Bach, 1970), nem a data da canção «Somos Livres» de Ermelinda Duarte (1974). Basta debruçarmo-nos sobre o círculo perfeito que Alexandre O’Neill compôs para a voz de Amália sob o som de Alain Oulman (1969), para avaliarmos a projecção psicológica que a gaivota tem, em termos semióticos, no bicho-homem e no povo português em particular. Falamos dessa ave de porte médio a grande, patas amarelas, pinta encarnada na mandíbula inferior, peito claro, dorso e asas de um cinzento mais ou menos escuro, as últimas primárias negras pintalgadas de branco. Gritam aos céus enevoados de Lisboa de modo enigmático, sempre angustiado. Talvez urgente, sim, por nos lembrar que, afinal, existe vida além da rotina urbana. A conspícua, gregária, destemida, mesmo aguerrida ave tão presente aos olhos do homem por a ele se dirigir, até perseguir, junto aos portos, cais de embarque dos cacilheiros, rumo ao soturno das traineiras, ao apetite de lixeiras e aterros sanitários.

Falar de gaivotas é falar de um certo romantismo comportamental, ora do onírico, ora da viva saudade, essa dor terna com que a beira-mar impede o homem de ir além-mar, além-o-outro, talvez além-ele-próprio. A saudade que do enlevo na observação circunvagante da gaivota se afigura em inveja pelo seu voo libertário.

Penso até que os ornitólogos se toldam por essa sinantropia, quase simbiose lírica, lágrima no canto do olho pela baixa luz do sol invernante, ao perscrutar o horizonte, tentando descobrir se a migradora gaivota-d’asa-escura Larus fuscus já mais se habituou a criar no lar português. Muito discutem tais olheiros científicos, vendo para lá do gesto da ave e do cinzento difuso das asas, em simultâneo, fenótipos e etologias, sem decidirem se o genoma vem mais ou menos cruzado pelo da gaivota-argêntea Larus michahellis, outrora gaivota-de-patas-amarelas, que o animal sempre assim as teve, ou pelo Larus argentatus, a gaivota-prateada, ou pela velha nomenclatura da do Cáspio, a Larus chachinnans… Pobres observadores, confundidos que andam pelos bancos da academia, queimando pestanas na cega voragem do curricular. Gaivotas… todas diferentes, todas iguais, de Lineu.

Melhor fora se lessem Mário de Carvalho, que tão bem observa o voar gregário pelos ares ou sobre as areias de Tróia, envolvendo a memória tristonha do “Pessimista em Fuga”. As recordações resvalam, no exacto momento narrativo, para o lado pungente de uma notícia que traz próxima a morte de Marília, adensando a tragédia do sofrimento e da solidão do auto-desconfiante personagem da novela. Refere o escritor uma espécie de vórtice descendo e poisando, para ali ficarem depois, agoirentas, «olhos parados, bicos curvos, penas pontiagudas», em torno do casal que em breve deixará de o ser, como se circulassem em multidão ansiosa, temente, faminta, à volta do cubo negro e proibido de Meca.

Sinceramente, eu vos digo. Se desejam a mais cabal e científica descrição de um caso, ou de uma aurora, ou de uma nuvem, ou de uma gaivota, passem a palavra ao ficcionista poeta.

João Eduardo Ferreira

Nota importante.
Este texto foi carinhosamente solicitado pelo projecto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental
e publicado em Abril de 2020 na revista ambiental on line Wilder

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